Perda da soberania no setor elétrico, aumento considerável da tarifa de luz e abertura de mais espaço para as térmicas (carbonização) em detrimento das fontes renováveis (água, sol e vento) são três das principais preocupações de senadores com a privatização da Eletrobras, empresa responsável por pelo menos 30% da energia do país. Esses e outros pontos polêmicos da Medida Provisória (MP) 1.031/2021, que dispõe sobre a venda acionária da estatal, foram debatidos nesta segunda-feira (31) em audiência pública realizada na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado.
Diante de possível racionamento por conta da crise hídrica e das problemáticas da crise econômico-sanitária resultante da covid-19, os senadores que participaram da audiência pública foram enfáticos em condenar a discussão de uma privatização neste momento, por meio de uma MP.
— Esse processo tem avançado de forma extremamente rápida, pulando etapas do processo legislativo normal e, ao mesmo tempo, sem a devida discussão dos impactos que acarretará sobre a atividade econômica, sobre especialmente a vida das pessoas — afirmou o senador Humberto Costa (PT-PE), presidente da CDH.
Paulo Paim (PT-RS), autor do requerimento da audiência, disse ser certo que o custo maior da energia terá efeito cascata, ou seja, os valores dos produtos finais também aumentarão de preço, desequilibrando o orçamento das famílias e, consequentemente, influenciando negativamente o processo inflacionário.
— Estudos apontam que o setor elétrico tem atraído investimento suficiente para garantir a sua expansão. Portanto, privatizar a Eletrobras para ter recursos privados para a expansão do setor não é necessário. Esses investimentos já estão ocorrendo. Entre 2003 e 2018, a capacidade instalada no Brasil cresceu 70%. A Eletrobras tem capacidade para gerar 30,1% de energia e possui 44% das linhas de transmissão. Com a privatização dessa estatal, o poder de mercado nas mãos de uma empresa privada não vai gerar competição justa, e caminharemos para uma injustiça social. Vai prejudicar principalmente os consumidores.
Pelo processo de privatização, o governo deverá emitir novas ações da empresa, com oferta a investidores privados, o que reduzirá sua participação no capital da Eletrobras, que teve lucro de R$ 30 bilhões nos últimos três anos. Hoje o governo tem 51,82% das ações ordinárias. A estimativa é de que reduza esse percentual a 45%, mas com direito a “golden share”, ou seja, direito de vetar em decisões consideradas mais sensíveis.
Diretora do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (Instituto Ilumina), Clarice Ferraz pontuou que se discute a privatização antes mesmo da aprovação do marco regulatório, ou seja, antes de definidas novas regras do setor, destacadas no PL 414/2021, em apreciação na Câmara dos Deputados.
— No Ministério de Minas e Energia está acontecendo essa intitulada “modernização do setor elétrico brasileiro”, com uma separação fio-energia [separação do serviço de conexão ao sistema elétrico e do serviço de venda de energia, que teriam contratos separados], hoje misturados na mesma conta de luz, e uma proposta de expansão do mercado livre como se a liberdade de escolha fosse resolver um problema de oferta. Isso está acontecendo sem que a própria agência de regulação tenha apresentado uma análise de impacto regulatório e uma disposição de como será a alocação de riscos do nosso setor hidrelétrico aqui no Brasil. Então, é um cenário de enorme incerteza, e nada pior do que a incerteza para atrair investimento — expôs Clarice, para quem o governo está “vendendo uma mina de ouro”.
Em paralelo, no setor elétrico vive-se um cenário de transformações tecnológicas, com mudança de paradigma e expansão de fontes renováveis, segundo Clarice, o que altera muito o funcionamento do sistema; por isso, deve-se “descarbonizar”, com regularização via reservatório, avalia.
— Então, a opção é a gente utilizar o quê? Todos os nossos potenciais de renováveis, porque este país é extraordinário realmente, tem um potencial enorme de energia solar, eólica e biomassa.
Representante da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras (Aesel), Ikaro Chaves destacou que quase R$ 600 bilhões — R$ 20 bilhões anuais — serão retirados dos consumidores nos 30 anos de concessão que estão sendo destinados à iniciativa privada na MP.
Ao garantir que “o racionamento é uma possibilidade cada vez maior, mas uma elevação substancial da tarifa é uma certeza”, com estimativas superiores a 10%, Chaves afirma que a contrapartida do governo são alguns “fundos regionais que estão sendo propostos para serem criados no âmbito da revitalização do Rio São Francisco, do Rio Parnaíba, da Bacia do Rio Grande e também para o programa de redução estrutural, um programa de eletrificação, da Amazônia Legal”.
— Esses programas todos somam R$ 8,75 bilhões a serem pagos. Além disso, R$ 2,5 bilhões para a conta de consumo de combustível, R$ 25,5 bilhões que vão para o Tesouro. É isso que vale a maior empresa do setor elétrico da América Latina. Desses R$ 25,5 bilhões, têm que ser retirados pelo menos R$ 4 bilhões, que são o recurso previsto para a criação da tal nova estatal, que vai ter que absorver Itaipu e a Eletronuclear, ou seja, R$ 21,5 bilhões no final das contas.
A privatização da Eletrobras não é necessária para atrair capitais privados e garantir a expansão do setor elétrico, segundo o ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) Maurício Tolmasquim.
— Entre 2005 e 2018, a capacidade instalada cresceu 70%, enquanto a economia cresceu a um ritmo muito menor do que esse. E o mais interessante é que quase 80% desses investimentos foram de capital privado. Então, o capital privado está investindo no setor elétrico justamente por conta dos leilões que foram organizados.
Ex-ministro de Minas e Energia e ex-diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Nelson Hubner disse que a venda da Eletrobras “está botando em risco o futuro do país”. Ele manifestou preocupação por não ter sido contemplada na MP questões sobre os consumidores cativos, apesar de estar recheada de “outras benesses”.
— O projeto de lei na Câmara, agora submetido ao Senado, subverte toda a essência do modelo setorial, cria reservas de mercado para fontes, como o caso da térmica, o caso da PCH [pequenas centrais hidrelétricas], e impõe todo sobrecusto da produção dessa energia para aqueles que são responsáveis pela garantia do suprimento, que são os consumidores cativos. Somos nós que garantimos a expansão do sistema com os leilões de energia, onde só as distribuidoras contratam no contrato de longo prazo. E quem ainda paga isso são os consumidores cativos. Então, será que alguém perguntou aos consumidores se eles querem essa energia mais cara em detrimento das fontes solares e eólicas tão mais baratas? — questionou, ao afirmar ainda que está havendo quebra de contrato, com base na Lei 12.783, de 2013, que garantiu a todos os consumidores cativos receber a energia das cotas a um preço regulado.
Representantes de vários setores da indústria, por meio de 40 associações, divulgaram manifesto em que definem como “danosas à sociedade” as alterações apresentadas na MP 1.031/2021.
O manifesto é especialmente voltado à inclusão de “jabutis” na MP que, segundo eles, prejudicariam não somente o consumidor residencial, mas principalmente grandes consumidores, como o setor industrial. A preocupação serie com a reserva de mercado para térmicas e pequenas centrais hidrelétricas.
— A MP exige que 50% do mercado regulado, obrigatoriamente, terão que ser atendidos pelas centrais hidrelétricas, até atingir 2 mil megawatts, e depois 40% do mercado terão que ser atendidos por pequenas centrais. Ora, uma criação de uma reserva de mercado totalmente contra a própria lógica que se argumenta de competição. E o que é mais interessante: apesar de essas fontes terem o mérito de serem renováveis, as pequenas centrais custam mais que o dobro do que as fontes eólicas fotovoltaicas — completou Tolmasquim.
A questão também foi levantada pelo senador Jean Paul Prates (PT-RN) ao defender que a “a Lei da Capitalização da Eletrobras não capitaliza, ela vende o controle da Eletrobras e enfia um monte de jabutis”.
— A gente fala tanto de mercado e, quando o mercado vai funcionar, o cara quer proteção, quer privilégio, quer que o Estado construa gasoduto. (…) Nós estamos no meio de uma pandemia: ninguém no mundo está vendendo ativos, ninguém no mundo está vendendo refinaria, ninguém no mundo está vendendo a holding das holdings de um enorme país como o Brasil, com hidrelétricas amortizadas, pagas, para depois aplicar preço de mercado a elas. Então, isso é um absurdo!
Da mesma forma, Zenaide Maia (Pros-RN) declarou que os senadores não podem aprovar essa MP, “não podem fazer isso com a maioria do povo brasileiro”.
— Para a maioria, só a cesta básica não resolve porque não pode pagar o gás de cozinha. Nós temos quase meio milhão de mortos por falta da compra da vacina na hora certa. E agora nós queremos condenar o povo brasileiro à escuridão? — questionou a senadora.
Em breve, o Senado deverá promover outro debate sobre o tema, com a aprovação do requerimento RQS 1.565/2021, do senador Paulo Rocha (PT-PA).
Fonte: Agência Senado
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